"I take pleasure in my transformations. I look quiet and consistent, but few know how many women there are in me." Anais Nin
10 julho 2013
"Patrícia decidira afagar ternamente os minutos daquela noite no sofá de pele. A chuva agredia violentamente quem da rua necessitara e a consciência disto bastara para a sua decisão. O som da chaleira foi a desgraça do ousado arrependimento momentâneo que surgiu como convidado inesperado. Debaixo do edredon esfolado à cama, o seu corpo aninhara-se a cada uma das covas desse velho amigo, inquilino comum em já dois dos seus retiros passados.
Num olhar concentrado que se podia adivinhar sob o vapor do chá pousado, manuseava entre as mãos a sua fiel câmara fotográfica. Toda uma vida pós-adolescente tinha sido testemunhada pelo seu alter-ego. As suas mãos de mulher haviam crescido tanto apertando aquele paralelepípedo metálico como o sexo dos homens que amara. Era na verdade o seu objecto fetiche pois, para os despertos, existem muitas formas de sedução. Manuseava-la sem acção definida, entre apertos vários... rodopiava-a com a segurança com que se lida com uma esfera. Pensava mais claramente quando o fazia... uma meditação aprendida em muitas noites de solidão. Por vezes repetia o seu nome como se de mantra se tratasse “ praktica... praktica...pra...kti...ca “.
Entre um ou outro golo de chá, avaliava os acontecimentos dessa tarde onde, pela primeira vez, se sentira insegura perante o seu desejo. O toque daquele estranho na sua mão deixara-a tensamente hesitante durante uns instantes, porém, mesmo recomposta das suas certezas em poucos segundos, dissecava agora a origem da breve insegurança. Analisara o episódio minuciosamente, passo a passo, os de cada um em direcções opostas naquele corredor. Podia ver claramente a luz e a falta dela, o som dos seus saltos em oposição ao silêncio dos passos dele, e o véu daquele aroma distinto... que não conseguia identificar. Como não reparara conscientemente na aproximação dele, apenas retinha na memória o vulto do seu casaco de marinheiro com as golas subidas servindo de resguardo ao seu cabelo já meio grisalho.
Afundava-se no peso do relaxamento do seu corpo, no peso da imagem que a fazia agora olhar serenamente cada racha no seu tecto. Pensava na loucura de ter aquele homem deitado agora mesmo na sua cama, dormindo como o mais intimo dos estranhos, o estranho que nunca tinha tido tempo de o ser. As breves palavras que haviam trocado cabiam na escala lacada de um teclado, cinquenta e duas brancas e trinta e seis negras. Oitenta e oito palavras com toda a música do Mundo embrionada nelas. Duas vozes num só som... arrebatado pelo génio louco de um pianista sem face encantando um auditório estrelado.
Quando desceu os olhos à sala, esse homem encostado à ombreira da porta olhava-a. Estava nu e pareceria a Patrícia que nunca faria sentido ser de outra forma. Como almas que se reconhecem, nada precisavam dizer. Os olhos davam as mãos e o silêncio da sala assistia às mais doces palavras que esse Inverno já testemunhara.
Pousou delicadamente a máquina e deu mais um gole no seu chá. Tinha os sentidos exponenciados do sexo em que se haviam espreguiçado nesse fim de tarde. O vapor do chá trazia-lhe aromas novos, toda uma China húmida invadia-a violentamente mas, ao invés de se deitar nas sedas enevoadas prometidas na essência que bebia em goles pequenos, o odor que desejava estava sobre a pele do seu amante, imóvel, ainda à porta do seu espaço .
Patrícia deixou escapar um sorriso de liberdade, levantou o edredon num convite ... estava nua."
by my love(r).
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Bê lá quéque dizes, caralhe.