"Pela segunda vez, ele escolheu o quarto verde. Encolhia os ombros ao número de metal aparafusado na porta, algarismos curvilíneos como a mulher que esperava. Para ele, o quarto verde era o bastante para se entender... e para se entender. Subiu no elevador de porta metálica à antiga... como ele gostava. Chegado ao quarto andar, puxou a porta pesada, em harmónio, sinais de um antes que gostaria de ter experimentado. Virou à direita e percorreu o corredor atapetado a vermelho. Parou junto à porta sem lhe reconhecer o número. Abriu, entrou e atirou a chave para cima da cama. Com passos sossegados, foi à janela, duas grandes vidraças sobre aquele bocado de cidade. Uma cidade baça, cinzenta, antiga. Leu de fugida os grandes letreiros de néon intrincadas sugestões comerciais, naquele alemão tão decadente. Puxou os cortinados de veludo verde escuro, gasto e confortante. Deixou um traço de luz entre o pano pesado, por onde um fio esbranquiçado mantinha luminosas as paredes verdes do quarto. Despiu o casaco e tirou do bolso a caixa de cigarrilhas panamianas, antes de o deixar cair no chão.
Tirou uma cigarrilha e desenhou os lábios com ela, antes de a pender com hábito no lado direito da boca. Olhou-se de cima, evitando o espelho por desafio. Com um toque de braços distendeu a camisa verde escura de seda e encontrou aquela subtileza esverdeada nas calças escuras, quase pretas. Sorriu aos sapatos. Tirou do bolso esquerdo o isqueiro, acendeu as velas em ambas as mesas de cabeceira e sentou-se na cadeira de braços pesada e monolítica, bem de frente para a janela e na posição exacta que tinha imaginado com minúcia de perspectiva. Acendeu a cigarrilha e esperou.
Os passos dela, abafados e leves, não lhe foram indiferentes. A campainha metálica do elevador denunciou-a. O chão do corredor, fofo por debaixo dos seus sapatos de salto exageradamente alto, anunciavam algo de subtil e agudo. Junto da porta, pareceu-lhe ouvi-la suspirar. Acreditou nesse suspiro longo. Ouviu as três pancadas espaçadas e numa voz que lhe pareceu demasiadamente profunda, disse-lhe que entrasse.
Antes de tudo, admirou-lhe o preto e branco da sua aparência. Tinha-a instruído com pormenor. Com muito pormenor, como se veste uma boneca. Ela fechou a porta atrás de si, deixou escorregar a gabardina e a mala para o chão e sem se voltar, sentou-se na beira da cama, mesmo no vértice que era trespassado pela luz da tarde. Sem mexer o resto do corpo, virou a cabeça para a penumbra e pediu para fumar. Ele apontou a caixa de cigarrilhas e as velas que ardiam surdamente na mesa de cabeceira. Tirou uma cigarrilha, aproximou-a, na boca, da chama e aspirou. Manteve-se de costas para ele, enquanto soprava o primeiro fumo. Sem se mexer, sem falar, como estava decidido. Nem quando sentiu um clicar mecânico e ouviu os primeiros acordes da música. Nem quando o ouviu soprar o primeiro fumo ao ritmo do clarinete.
A canção ainda tocou um ou dois minutos, enquanto a sua imobilidade enchia o quarto. Sentiu algo a cair na cama. Sorriu. Um sorriso malicioso, vermelho, fundo. Olhou ainda com o sorriso a serpentear-lhe a palidez e viu o isqueiro. Conhecia os significados. E na sua obediência, havia travos de pimenta e canela. Agarrou nele, sentiu-o na mão, cheirou-lhe o cheiro dele e fechou os olhos, enquanto o passava pelo pescoço e o queixo. Pousou o resto da cigarrilha, para se apagar tranquilamente, enquanto intranquila, começou a deixar-se levar. Levantou-se, virou-se de frente para ele, adivinhando apenas contornos e o fumo em espiral. Abriu ligeiramente as pernas e numa pose quase de desafio, deixou o isqueiro viajar-lhe o corpo, desabotoando lentamente os botões da camisa branca, acompanhando o sinuoso rendilhado do soutien, o relevo dos bicos do seu peito, a pele alva por debaixo do decote. Deixou dois botões apertados, provocando um regaço em balão que lhe acrescentava o torneado de uma dama renascentista Ele sorriu, passou a mão pelo pescoço e deixou os dedos deslizar. Ela sentiu-lhe a distância da carícia. Deixou cair o braço e mão agarrando o isqueiro e com a outra, revolveu os cabelos à procura da reacção dele. Imóvel, desafiou-o com os dentes nos lábios. Ele manteve a penumbra. Ela tinha de continuar."
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