"Patrícia decidira afagar ternamente os minutos daquela noite no sofá de pele. A chuva agredia violentamente quem da rua necessitara e a consciência disto bastara para a sua decisão. O som da chaleira foi a desgraça do ousado arrependimento momentâneo que surgiu como convidado inesperado. Debaixo do edredon esfolado à cama, o seu corpo aninhara-se a cada uma das covas desse velho amigo, inquilino comum em já dois dos seus retiros passados.
Num olhar concentrado que se podia adivinhar sob o vapor do chá pousado, manuseava entre as mãos a sua fiel câmara fotográfica. Toda uma vida pós-adolescente tinha sido testemunhada pelo seu alter-ego. As suas mãos de mulher haviam crescido tanto apertando aquele paralelepípedo metálico como o sexo dos homens que amara. Era na verdade o seu objecto fetiche pois, para os despertos, existem muitas formas de sedução. Manuseava-la sem acção definida, entre apertos vários... rodopiava-a com a segurança com que se lida com uma esfera. Pensava mais claramente quando o fazia... uma meditação aprendida em muitas noites de solidão. Por vezes repetia o seu nome como se de mantra se tratasse “ praktica... praktica...pra...kti...ca “.
Entre um ou outro golo de chá, avaliava os acontecimentos dessa tarde onde, pela primeira vez, se sentira insegura perante o seu desejo. O toque daquele estranho na sua mão deixara-a tensamente hesitante durante uns instantes, porém, mesmo recomposta das suas certezas em poucos segundos, dissecava agora a origem da breve insegurança. Analisara o episódio minuciosamente, passo a passo, os de cada um em direcções opostas naquele corredor. Podia ver claramente a luz e a falta dela, o som dos seus saltos em oposição ao silêncio dos passos dele, e o véu daquele aroma distinto... que não conseguia identificar. Como não reparara conscientemente na aproximação dele, apenas retinha na memória o vulto do seu casaco de marinheiro com as golas subidas servindo de resguardo ao seu cabelo já meio grisalho.
Afundava-se no peso do relaxamento do seu corpo, no peso da imagem que a fazia agora olhar serenamente cada racha no seu tecto. Pensava na loucura de ter aquele homem deitado agora mesmo na sua cama, dormindo como o mais intimo dos estranhos, o estranho que nunca tinha tido tempo de o ser. As breves palavras que haviam trocado cabiam na escala lacada de um teclado, cinquenta e duas brancas e trinta e seis negras. Oitenta e oito palavras com toda a música do Mundo embrionada nelas. Duas vozes num só som... arrebatado pelo génio louco de um pianista sem face encantando um auditório estrelado.
Quando desceu os olhos à sala, esse homem encostado à ombreira da porta olhava-a. Estava nu e pareceria a Patrícia que nunca faria sentido ser de outra forma. Como almas que se reconhecem, nada precisavam dizer. Os olhos davam as mãos e o silêncio da sala assistia às mais doces palavras que esse Inverno já testemunhara.
Pousou delicadamente a máquina e deu mais um gole no seu chá. Tinha os sentidos exponenciados do sexo em que se haviam espreguiçado nesse fim de tarde. O vapor do chá trazia-lhe aromas novos, toda uma China húmida invadia-a violentamente mas, ao invés de se deitar nas sedas enevoadas prometidas na essência que bebia em goles pequenos, o odor que desejava estava sobre a pele do seu amante, imóvel, ainda à porta do seu espaço .
Patrícia deixou escapar um sorriso de liberdade, levantou o edredon num convite ... estava nua."
by my love(r).